13 de outubro de 2009

FLORA











Uma semana após a partida da Olívia, dirigi-me ao canil/gatil municipal de Lisboa a fim de dar uma oportunidade de vida a um dos inúmeros animais que por lá se encontravam. 
Nessa primeira visita, houve um em particular que me marcou profundamente e precipitou uma segunda ida - a Flora, uma pequenina gata branca com manchas negras, rasgados olhos de um verde-pálido, voz rouca de taberneiro, e o fim da cauda tragicamente em carne viva.
Miava imenso, com a característica voz e um olhar que nunca consegui esquecer, dirigindo-se a mim sempre que me via.
Consigo estavam dois bébés de cerca de 1/2 meses - que me asseguravam ser seus -  um deles, abstraído do local horrífico onde se encontrava, a brincar com a cauda ferida da suposta mãe.
A seu lado, na mesma box, estava a gata com os recém-nascidos já sem vida.

Apesar de querer muito trazer a Flora, devido a ter 2 filhotes e não os querer separar da 'mãe' - como já tinha excedido o número de animais permitido - acabei por trazer o Tomás e o Hugo, deixando a Flora para trás.

Nos dias que se seguiram a imagem da Flora a miar desalmadamente apoderou-se dos meus pensamentos, sendo que literalmente não conseguia pensar em mais nada, só nela presa naquela box imunda.
Mesmo tendo a noção que não é possível salvar todos os animais com que me cruzo e que esta gatinha seria mais uma entre os muitos que por lá se encontravam, senti-me impotente perante o seu destino, que caso por lá ficasse seria certamente trágico.

A fim de encontrar quem a albergasse, enviei e-mails e divulguei a Flora e os gatinhos o mais que pude, até que uma senhora do Norte me avisou que num forum se encontrava uma rapariga que tinha salvo uma gata do gatil municipal cuja descrição era a da Flora.
Incrédula, contactei a Ana - que a havia resgatado - que amavelmente me enviou as fotografias da gata tendo-se confirmado que, numa estranha obra do acaso, era mesmo a que havia visto, e que afinal, apesar de fisicamente semelhantes, os filhotes não eram seus.

A Flora - na altura Jade - era uma gata de rua (ver aqui e aqui), muito meiga, alimentada por uma senhora de idade lá para os lados de S. Bento, a qual, após ter uma ninhada, foi apanhada pelo canil municipal, onde a vi.

A sorte brilhou-lhe alguns dias depois, quando uma equipa de filmagens escolheu-a - juntamente com uma gata mais nova de aparência semelhante - para entrar num filme, mas aparentemente uma actriz não gostou muito da ideia de contracenar com as duas felinas e foram retiradas dos planos da equipa de filmagens.
Mesmo assim, a Flora e a sua pequena companheira já haviam sido removidas do corredor da morte e colocadas na clínica do canil, o que lhes acabou por salvar a vida.

Totalmente apaixonada pela frágil criatura que conhecera na pior das circunstâncias, comprometi-me no mesmo dia a ficar com ela, tendo ficado com a Ana até duas semanas após a segunda vacina contra o FeLV.
Foi esterilizada, a cauda foi parcialmente amputada e foi tratada enquanto aguardava a imunidade conferida pelas vacinas.

Fez este Domingo três semanas que a Flora chegou cá a casa. 

Mal a reencontrei achei-a um mimo, uma absoluta doçura, o animal mais frágil e doce que conheci, tendo-se integrado em apenas um ou dois dias com os outros habitantes da casa.
Muito bonita e castiça, a gatinha de tamanho mini, delicadas patas, olhos rasgados, pequenina cauda amputada e estranha voz rouca, reconquistou o meu coração e fiquei tão feliz por a ver novamente, desta feita na minha casa, com todo o conforto e atenção que merecia.

Quando chegou reparei que estava magra e com a barriga um pouco saliente mas, dado estar a ter acompanhamento veterinário, atribuí tal facto à sua própria constituição física.
No entanto, à medida que a semana ia passando, dado a barriga parecer visualmente 'deslocada' do resto do corpo, comecei a desconfiar que poderia ser PIF (Peritonite Infecciosa Felina).
No veterinário, após um teste de coronavírus altíssimo - 1 para 3200 - e juntamente com os outros sinais clínicos, confirmou-se o diagnóstico.
Claro está que fiquei devastada porque esta doença, praticamente incurável, é a mais temida entre quem tem gatos... Apesar de cerca de 80% destes animais já ter sido infectado pelo vírus FCoV - o qual origina esta terrível doença - o mesmo é praticamente inócuo até que uma situação de grande stress ambiental (mudança de casa, abandono, um novo animal) ou físico (vacinas, doenças) origina a sua mutação para PIF, que é nem mais nem menos que uma resposta inflamatória do sistema imunitário à presença do vírus mutado.

Como sempre, pesquisei todas as informações que consegui encontrar sobre esta doença, tendo descoberto que, apesar do diagnóstico de PIF ser à partida uma sentença de morte, religiosamente medicados cerca de 30% dos gatos conseguem montar uma resposta imunitária positiva e reverter o processo.
A Flora tinha um caso de PIF húmido ou efusivo, no qual o abdómen se encontra aumentado devido à presença de um líquido inflamatório amarelo, a ascite, que à medida que progredisse em volume acabaria  por fazer pressão sobre os orgãos vizinhos.
O prognóstico apresentava-se como muito reservado, mas dado 3 em cada 10 gatos sobreviverem ao PIF, decidi que, enquanto tivesse qualidade de vida, tudo faria para que a Flora pertencesse ao grupo dos sobreviventes (eu não acredito em eutanásia somente baseada num diagnóstico, pois enquanto o animal não sofrer, estiver confortável e passível de ser tratado, tem direito à vida).

A Flora estava estável, comia muito bem e fazia sua vida normalmente, pelo que decidi consultar outra médica, proactiva e muitíssimo bem informada, a qual, apesar de confirmar que haviam grandes hipóteses da Flora não sobreviver, considerou valer a pena iniciar o tratamento indicado nestes casos.
A Flora iniciou o tratamento que consistia em injecções de 2 em 2 dias do imuno-estimulante Infermun, num corticóide (para diminuir a resposta imunitária contraprodutiva), um antibiótico de tetraciclina (para evitar infecções oportunistas devido à baixa da resposta imunitária), um diurético (para ajudar a drenar o líquido inflamatório), 1 ml diário de Interferon oral (um imuno-estimulante), e três potentes suplementos alimentares: Corpet (outro imuno-estimulante comprovado, entre outros, em casos de FeLV, FIV e PIF) Hemolitan (um suplemento para casos de anemia) e Nutri-plus, um gel altamente calórico e nutritivo que já havia dado à Olívia e ao Tomás.

A Flora foi devidamente medicada e tratada com muito amor, mas infelizmente no Domingo perdeu a vontade de comer e notei que se esforçava a respirar.
Ontem, de lágrimas nos olhos e com suspeitas de que o líquido teria progredido para os pulmões, levei-a à veterinária que a seguia já a temer o pior, tendo-se de facto confirmado o que temia após um raio-x... Os pulmões estavam agora a começar a ser preenchidos e, apesar de ainda ter cerca de uma semana de vida, seria em desnecessário sofrimento, visto o seu sistema imunitário não estar a responder ao tratamento e a progressão da doença ir somente fazê-la definhar sem sentido.

A Flora foi adormecida connosco a seu lado, e apesar de ver uma criatura que amamos tanto cessar de respirar e cair inanimada ser absolutamente assustador e extremamente doloroso, sei de todo o coração que foi o melhor para ela, mas lamento que não lhe tenha sido possível ter uma vida mais feliz após um passado cheio de tristeza.
Como os nossos outros meninos que partiram, a Flora será cremada individualmente esta Quinta-feira, para que a sua presença faça parte das nossas vidas para todo o sempre.

Aqui deixo algumas fotos da gatinha mais suave e frágil que conheci...


( Imagens: Iolanda Mealha )

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6 comentários:

  1. Ficará para sempre nos nossos corações... como a gatinha mais delicada e linda do mundo!

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  2. Querida Iolanda,

    Lamento profundamente o sucedido... mas acredito que foi melhor assim, verem-na partir como se adormecesse ao vosso lado (ao invés de verem a progressão dessa doença, que seria uma visão muito terrível).

    Como te disse há uns tempos atrás, acredito que os gatos entram nas nossas vidas sempre com um sentido mais profundo do que aquele que o comum dos mortais possa imaginar.
    Acredito que com a linda Flora, que vos escolheu, também foi assim.
    Só alguém com um coração maior que o mundo acederia a acolher um animal como a Flora, que, para muitos outros, já estaria perdido há muito tempo, aguardando morte certa no Canil ou nas ruas.

    Desculpa não ter estado mais presente, nem te ter enviado um e-mail a perguntar como estava a Flora (depois d eme teres dito que ela deixara de comer) - apesar de muito ter pensado nela...
    Mas as coisas por aqui não andam nada fáceis... e são desilusões atrás de desilusões, sobretudo com as pessoas.

    Um grande beijinho

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  3. Obrigada pelo apoio Xana... Foi muito triste vê-la partir, e apesar de a ter tratado religiosamente e com muito amor com o objectivo de a curar, desde o diagnóstico que me preparei para a (quase certa) eventualidade do vírus vencer.

    No Domingo tive que alimentá-la com uma seringa, o que foi muito duro porque, pela minha experiência com o Tobias e a Olívia, a anorexia é o primeiro sinal de que o tratamento não está a resultar, e como sabes, é uma imagem muito difícil de reter, especialmente se se revelar infrutífera.

    Agora tenho que olhar pelos meus dois meninos e esperar que também não desenvolvam PIF... Ser-me-ia muito difícil lidar com outra situação destas em tão curto espaço de tempo, e seria verdadeiramente injusto para eles... Já basta a Flora ter perdido a vida, mais tragédias não.

    Compreendo que não tenhas dito nada, pois sei que também perdeste o Boneco recentemente e tens imensos casos com que lidar.
    Infelizmente com tantos animais a nascerem e tanta má vontade em relação a eles, não anda fácil para ninguém.
    Se quiseres falar já sabes.

    Obrigada e beijinhos. xxx

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  4. Muito obrigada, Amiga.
    Escrevo-te com mais calma no fim-de-semana.

    Bjs e coragem

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  5. oh :(((...lamento imenso, soube agora mesmo pela Ana M....
    Apesar de ter sido pouco o tempo que estiveram juntos, tenho a certeza que a linda e gentil Flora, sentiu a tua família como verdadeiramente sua!
    É muito difícil e duro este momento, e parece-nos injusto perder um ser tão especial e maravilhoso, tão cedo(é sempre cedo demais...), lembra-te que tu, o Álvaro (e toda a família canina e felina), foram a melhor coisa que lhe aconteceu, deram Amor, Protecção e proporcionaram uma passagem calma e cheia de amor...ela já não está fisicamente mas continua viva nos vossos corações e nos nossos(pelas vossas palavras...no meu ela ficará com certeza tal com ficou a lembrança quase fugaz do querido
    Hugo, outra vitima da ignorância e das péssimas condições daquele lugar nojento que chamam de canil municipal e que não passa de uma aberração que se mantém devido ao encolher de ombros desta sociedade egoísta e que se acha superior a este horror...enfim nem vou dizer mais nada pois a raiva é muita e o inconformista de viver lado a lado com semelhantes dramas deixa-me triste...
    Bjocas e turrinhas,
    estou com vocês no coração,
    lamento profundamnte,
    vocês e a Flora, mereciam um final feliz durante muito mais tempo ...

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  6. Obrigadíssima pelo apoio Xana... Pelo menos a miúda foi feliz nas suas últimas três semanas de vida.

    Apesar da perda da Flora ter sido muito injusta e trágica, estou concentrada em minimizar os estragos, dando o maior apoio possível ao Fibi e ao Tomás, para que não desenvolvam também a doença.
    Como também foram infectados, e ainda por cima são imunodeficientes, estou de olho em possíveis sintomas, a nutri-los o melhor que posso com Corpet e Interferon oral (Virbagen) misturados na comida uma vez ao dia, e a minimizar-lhes o stress...

    Espero que tudo corra pelo melhor.

    Beijinhos, e turrinhas para os teus protegidos.

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Obrigada pelo seu comentário, o qual será publicado muito em breve.